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PANDEMIA DO OUTRO LADO DO MURO 

PANDEMIA DO OUTRO LADO DO MURO

​Como a Covid-19 afeta quem habita, quem visita e quem trabalha nos sistemas prisional e socioeducativo do Ceará

texto Cindy Damasceno e Marcela Tosi ilustrações Natali Carvalho

Depoimentos contam sobre aumento de violação de direitos das pessoas em privação de liberdade. Dificuldade em receber informações, reaproveitamento de máscaras de tecido entre detentos e negação de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) estão entre as denúncias.

“A gente está falando dos isolados do mundo num contexto de um segundo isolamento”, afirma Adriana Souza*, mãe de uma das 22.565 pessoas privadas de liberdade no Ceará. “Qual é a perspectiva de essas pessoas serem vistas, serem respeitadas? É a família.” Vivendo em condições precárias e de tortura, como reconhecido pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), em 2019, a situação dos internos ficou ainda pior nos quase seis meses de visitas suspensas em decorrência da pandemia de Covid-19.


Entre as principais denúncias feitas por familiares, advogados e organizações da sociedade civil está a dificuldade de comunicação e a consequente ausência de informação. “Durante a pandemia, os telefones não funcionavam, de nenhum dos 14 presídios da Região Metropolitana de Fortaleza. Quem trazia alguma notícia eram os familiares que iam lá ou alguém que tivesse um advogado”, conta Adriana. No período, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) criou o projeto "Mensagem de Amor" para a troca de cartas em forma de e-mails entre familiares e internos.


A pasta afirma que mais de 50 mil interações foram completadas. Contudo, para os familiares a história é diferente. “Foi extremamente seletivo e mentiroso. Tinha que ter um e-mail e muitas famílias do Interior chegavam nos grupos perguntando o que é um e-mail”, lembra Adriana. Foram noites sem dormir em que parentes buscaram se ajudar compartilhando informações e escrevendo cartas, que muitas vezes não chegavam ao destino ou não eram respondidas.

 

“Teve familiar que inclusive relatou que existiam cartas manipuladas. A carta vinha com informação que a família não sabia nem de quem era, de quem se tratava, então não era pra aquela pessoa, né?”, questiona. “Quando chegava era sempre dizendo que estava tudo bem. Mas como é que estava tudo bem? Ao menos era um alívio saber que ainda estavam vivos.” Sem notícias, familiares passaram a enfrentar crises de ansiedade, insônia e pioras na saúde.

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"Outro problema foi o adoecimento das famílias nesse período da pandemia. Até hoje, a gente recebe no grupo áudios chorosos. Eu tô conseguindo porque eu tive uma rede de apoio. Mas para quem não conseguiu foi bem complicado"

“Notícias deles eu sempre trazia, a família queria saber como é que estava a questão de higiene, aspecto físico”, relata a advogada criminalista Lúcia Rodrigues. Sua rotina de trabalho mudou significativamente com a chegada do novo coronavírus ao Ceará. Passar pelos portões de qualquer uma das unidades prisionais ganhou novos procedimentos para evitar o contágio pelo Sars-Cov-2, mas não foi só isso. Além de assessora jurídica, a advogada passou a ser o meio de familiares terem informações sobre quem está dentro das grades. “Já existia essa demanda antes e após a pandemia aumentou muito. Alguns passaram a trabalhar só com isso”, afirma.

PRIMEIRA PARTE
Frente às dificuldades de comunicação com seus filhos, as repórteres sugeriram a duas mães que escrevessem as cartas que gostariam de enviar. O resultado deste compartilhamento foi transformado nos áudios que podem ser ouvidos ao longo da reportagem

A condição foi especialmente complicada pela deficiência de máscaras de proteção facial para os detentos. O cenário é descrito por egressos e por advogados que visitaram clientes desde março deste ano. “Conversei com alguns que afirmaram ter uma única máscara para revezar conforme entram no parlatório”, expõe Lúcia. Segundo a SAP, “o sistema prisional do Ceará foi o primeiro do Brasil a garantir uso de máscaras a todos os internos e internas do sistema. Eles recebem novas máscaras todos os dias e o uso é obrigatório.”


Para Ruth Leite, ex-presidente do Conselho Penitenciário (Copen) e advogada da Pastoral Carcerária, “é como se houvesse dois sistemas penitenciários diferentes”. “Desde o começo do ano passado, agravado na pandemia, há essa dissonância entre o que diz o governo e o sistema de justiça e o que relatam as famílias, os advogados e os internos”, pontua. Ruth integra o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (GMF) do Tribunal de Justiça Ceará.


Com a chegada da Covid-19, o Grupo ficou responsável por encaminhar quinzenalmente ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informações sobre o contexto da pandemia no Estado. “A dificuldade maior é monitorar de longe, sem entrar, sem constatar”, afirma. “É muito destoante entre o que a SAP diz que faz e os familiares, os presos e os advogados informam que veem. E aí se você vai dizer que está acontecendo assim, como é que você provar se você não pode ir lá?” Desde março, as inspeções nas unidades prisionais do Ceará acontecem remotamente. 
 

“A gente tem histórico de pessoas que morreram, mas que é negado que tenha sido por Covid-19 e fica aquela coisa mal contada, aquela situação sem definição”, lamenta Ruth. “Os presos relatam que muita gente ficou doente, que muita gente passou muito mal, mas que se recuperaram sozinhos porque [as unidades] não têm condições de atender todo mundo.” O mais recente boletim epidemiológico organizado pelo CNJ, divulgado no dia 28 de outubro, indica que 1.188 detentos do sistema prisional cearense foram infectados pelo Sars-Cov-2. Destes, quatro morreram.


O documento aponta que 612 servidores dos presídios foram diagnosticados com o novo coronavírus e um deles morreu em decorrência da doença. De acordo com a SAP, o Ceará conta com 3.800 policiais penais. A reportagem entrou em contato com as entidades representativas dos servidores no Estado a fim de ter acesso a informações e dados compilados por estas, mas não teve resposta. Ainda segundo o boletim, 11.371 testes de diagnóstico da Covid-19 foram realizados em   pessoas privadas de liberdade   e em servidores do sistema prisional cearense. 

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"Como é que tá lá fora?"

Aquela duplicidade de mundos apontada por Ruth não é restrita ao sistema penitenciário cearense. Quem tem contato com as unidades socioeducativas do Estado relata o mesmo sentimento de realidades fronteiriças. São muitos os que partilham da experiência: nas estimativas da Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (Seas), célula do Governo responsável pelo sistema de reintegração de adolescentes, até setembro deste ano, 583 jovens, entre aqueles em regime provisório e os internos, e mil profissionais multidisciplinares compunham a rede socioeducativa do Ceará. Ao todo são 17 Centros Educativos. 


O boletim do CNJ indica que 83 jovens privados de liberdade no Estado foram infectados pelo novo coronavírus e não foram registrados óbitos em decorrência da Covid-19. Já entre os servidores, foram 223 confirmações e uma morte. O Governo realizou 255 testes sorológicos nos jovens e 673 testes no quadro de funcionários.


Ao contrário dos detentos prisionais, no socioeducativo, a sensação de quem estava do “lado de cá” era de segurança e curiosidade sobre a pandemia. Por isso, quando Maria Santos, psicóloga do sistema socioeducativo há quase três anos, chegou para o acompanhamento de rotina em um dos centros educacionais, não estranhou o questionamento dos acompanhados. “Como é que tá lá fora?” virou a pergunta padrão dos adolescentes durante o atendimento psicológico. “Principalmente dos internos que já estavam lá há quase seis meses. Eles tinham muito esse entendimento de que quem estava aqui fora, na rotina, é quem teria que se preocupar com algo. Nos viam chegar com as máscaras de proteção e acho que eles se sentiam resguardados dentro da unidade”, analisa a psicóloga. 


Maria visita os espaços ressocializadores de quinzena em quinzena como uma das profissionais na equipe multidisciplinar de saúde dos centros. Durante o período de isolamento, esteve entre funções. Trabalhou na triagem para novos internos e no acompanhamento psicológico dos adolescentes já institucionalizados. Ela, paramentada dos pés à cabeça com jaleco e avental e máscara e viseira e luva. Eles, aguardando o encaminhamento de rosto livre. “Só com a roupa do corpo. Sem máscara nenhuma”, relembra a psicóloga.

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O informado pela administração é que não havia motivo para adolescentes estarem com a proteção facial. “Ele está dentro da unidade e não está tendo contato com outras pessoas”, foi repassado burocraticamente para a equipe, conta Maria. As situações de uso de máscara eram pontuais. “Só no caso do adolescente ter que ir a um posto de saúde ou numa audiência.” Proteção básica contra Covid-19, a máscara virou motivo de embate no começo do isolamento social nos centros educativos. 


Enquanto a equipe multidisciplinar, formada por profissionais da saúde, dispunha dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para cumprirem rotina nas unidades, outra parte do efetivo do socioeducativo precisou recorrer à administração para garantir os equipamentos. “Era uma briga pra gente conseguir máscara, luva e álcool em gel. Não forneceram durante o primeiro mês”, calcula Lurdes dos Santos, técnica socioeducadora de um dos centros cearenses. Entre os servidores do sistema, o agente socioeducador é o que está mais próximo dos jovens. “Somos nós que os acompanhamos durante o dia e a noite. Arrumamos o quarto, levamos para as atividades”, explica.


Sem máscara de proteção, álcool em gel ou luva, os profissionais viram os casos de Covid-19 aumentar entre os internos, mesmo após medidas mais rígidas, como a suspensão das visitas de familiares. “Não existe isolamento social no socioeducativo. Dois adolescentes cruzaram a unidade em que trabalho. Foram pra enfermaria, voltaram. Os dois com suspeita de coronavírus. Não foi colocado nem máscara. Testaram positivo e tiveram contato com várias pessoas. Meus coordenadores obrigaram a gente a não divulgar. Mas não tinha como, né? Por questões de segurança, a gente espalhou pra todo mundo, para a galera ter esse cuidado”, relembra Lurdes. 
 

Atuantes in loco durante a pandemia, os agentes foram os primeiros a ter as funções modificadas no início da quarentena. Os turnos de trabalho foram fragmentados em escalas de 12 horas de plantão a cada 36 horas de folga. Profissionais da categoria que integram o grupo de risco foram afastados do serviço. Em contrapartida, os que permaneceram na unidade precisaram lidar com a displicência da gestão — algo que afetou também os adolescentes em acompanhamento.

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O lado de cá pela tela do telefone 

Entre os jovens no sistema socioeducativo está Marcelo Nascimento, 18, interno de uma das instituição cearenses há três anos, entre idas e vindas. Parte deste trajeto aconteceu durante a quarentena. “Diversas vezes ele foi apreendido no isolamento”, explica Rosa Nascimento, mãe do rapaz. “Na última vez, em junho, foi indicado ao regime de seis meses.” Mãe de três filhos, Dona Rosa é, além de figura materna, “pai, amiga, dona de casa, tudo junto!”. O caçula é quem está na instituição. “Estou com ele nisso desde quando tinha 15 anos de idade”, calcula. 
 

Após a última internação de Marcelo, as medidas sanitárias adotadas distanciaram mãe e filho por mais de 90 dias. As novidades sobre a família chegaram ao rapaz pelo quadradinho do celular. “Estava tendo chamadas de vídeo e estava sendo muito doloroso pra mim. Eram só dez minutos”, relembra. Rosa conta ainda que os centros estavam adotando a sanção de isolamento forçado no dormitório, conhecida como “tranca”. “O Marcelo se envolveu em uma briga para proteger um menino lá. Aí ele tinha acabado de chegar e foi pra tranca. Me contou que passou o dia todo”, afirma.  No fim de setembro, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca) e outras entidades para a garantia de direitos realizaram uma inspeção no Centro Socioeducativo Aldaci Barbosa Mota, único exclusivamente feminino no Estado. 
 

No local, a comissão formada pelo Cedeca, Fórum Cearense de Mulheres e Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Ceará, identificou condições favoráveis à transmissão de Covid-19. Em pesquisa com internas, a equipe também recolheu denúncias. De acordo com o relatório da visita, detentas relataram serem algemadas nas grades dos dormitórios por agentes socioeducadores por cerca de quatro horas diárias.

 

Castigos por meio das “trancas” também foram comunicados no documento. A prática é ilegal e vetada pela Justiça do Ceará em 2019, quando em uma ação judicial a 3ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza a identificou como uma prática de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana. 

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Renan Pinheiro, assessor jurídico do Cedeca, avalia que, assim como em outras instituições de privação de liberdade, a rigidez do isolamento social dentro do sistema socioeducativo pode deixar os jovens mais vulneráveis a violações de direitos humanos. “O direito à educação foi restringido. Os cursos profissionalizantes que existiam foram restringidos. As atividades precisaram ser restritas. É um contexto em que esses adolescentes tiveram direitos retirados abruptamente. São locais isolados. Se esse adolescente está mais isolado, com menos olhares de fora, ele está mais suscetível à violência”, pondera. 


Outra preocupação é com o enfraquecimento dos vínculos afetivos, necessários para uma ressocialização plena. “Para um jovem que está privado, a visita familiar é um das coisas mais importantes para a vida dele. É o local de afeto. Ser privado de ver sua mãe, seus companheiros, nesse momento, é um dano emocional grandíssimo”, analisa Renan, que acrescenta:  

“O sistema socioeducativo sofreu com a pandemia, mas acho que as políticas de privação de liberdade foram as que mais sofreram. A instituição de privação de liberdade tem por necessidade ser apartada da sociedade. É um local de confinamento” 

O encontro esperado por Marcelo e Rosa aconteceu no mês passado, quando a Seas permitiu o retorno das visitas físicas em unidades socioeducativas. “Dividi um Uber com outras mães que eu conheci e fui. Quando cheguei lá, me senti uma astronauta com aquelas roupas”, brinca. Para ver o filho Dona Rosa vestiu máscara, luva e touca higiênica. “Pisava no álcool, andava por uma esteira. Mandaram a gente olhar para uma câmera. No fim disso tudo, entrei e vi meu filho”, conta. “Ele tá enorme. Minha cabeça, bate no peito dele.” 


O papo presencial também foi abreviado, mas satisfatório. “Eu queria ter certeza de que ele estava bem. Pegar nele, ver ele. Estava muito nervosa. Abracei muito, chorei. Pior do que você ter um filho numa situação dessa é você ter um filho morto.” Esse tem sido o relato de diversas mães e familiares com a volta da possibilidade de visitas.

O não-dito pelo dito: respostas institucionais

Sobre as denúncias dadas pelas famílias, a reportagem entrou em contato com as pastas responsáveis pela administração dos sistemas entre os meses de agosto e outubro de 2020. Instituições fiscalizadoras e jurídicos também foram consultados no mesmo intervalo de tempo. Em defesa da transparência de apuração, fundamental para o exercício do jornalismo profissional, cópias das solicitações enviadas às instituições competentes foram adicionadas à reportagem. É possível acessar as respostas de cada órgão clicando no links a seguir: 


A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) foi questionada sobre as medidas adotadas no sistema penitenciário, bem como sobre as denúncias recolhidas pela reportagem. As informações cedidas pela pasta foram colocadas ao longo do texto. No entanto, a SAP não respondeu diretamente sobre relatos da manutenção das chamadas ‘trancas’ e reutilização das máscaras pelos detentos. 


Já a Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (Seas) foi questionada sobre a falta de material para internos e funcionários. A Seas limitou-se a dizer, por nota, que adota desde o início da pandemia “todas as medidas de prevenção conforme recomendações dos órgãos de saúde”. A Superintendência adiciona que lançou um Plano de Contingência com “diversas ações preventivas nos Centros Socioeducativos do Ceará”.

 
O Ministério Público do Ceará (MPCE) e o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE) foram questionados sobre fiscalizações e medidas recomendatórias para os sistemas prisional e socioeducativo durante a pandemia. O MPCE respondeu somente em relação ao sistema prisional. O TJCE não deu qualquer resposta.  A Defensoria Pública do Ceará, com células específicas para atendimento de pessoas em privação de liberdade, também foi procurada e não respondeu até a publicação deste material.

 


* Em respeito ao Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, as repórteres decidiram por preservar a identidade dos familiares e profissionais entrevistados. Detalhes que permitissem possíveis identificações das fontes, como nome e sobrenome, datas dos acontecimentos e características físicas, foram modificados para manter o anonimato.

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