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A PANDEMIA NÃO É DEMOCRÁTICA

​Como a Covid-19 atingiu de formas distintas as diferentes realidades e expôs os abismos de desigualdade social existentes no Ceará

texto por Alan Magno e Ana Luiza Serrão 

colagens e infografia por Rebeca Quirino e Raquel Gadelha

EFEITOS ECONÔMICOS

E SOCIAIS DA PANDEMIA

DESIGUALDADES

As classes sociais com menor poder econômico foram as mais afetadas pela pandemia, tal fato foi evidenciado nas análises de especialistas consultados pela reportagem, além de serem refletidos nos índices de desemprego, no número de pessoas que precisaram ir morar com familiares por não mais conseguirem pagar o aluguel, ou mesmo no fato de que profissionais assalariados, por vezes, sequer conseguiram o direito de manter um isolamento pela necessidade constante de buscar renda. 

 

Confira a análise feita pela doutora em ciências sociais, Danyelle Nilin, coordenadora do Laboratório de Estudos de Política, Educação e Cidade (LEPEC) da Universidade Federal do Ceará (UFC) que ao longo dos quatro primeiros meses de quarentena desenvolveu uma pesquisa sobre como as diferentes realidades sociais de Fortaleza estavam vivenciado a pandemia.

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Confira a análise feita pelo economista, professor do programa de mestrado e doutorado em administração e controladoria da Universidade Federal do Ceará (UFC), Érico Veras. Com pesquisas na área de finanças comportamentais, o especialista destaca os impactos gerados pela pandemia de Covid-19 no cenário econômico nacional.

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Em meio aos níveis recordes de desemprego
Questões como raça/cor influenciaram diretamente na falta de renda e de oportunidades de trabalho durante a pandemia
O grau de instrução também é uma evidência das desigualdades intensificadas pela pandemia, mais vulneráveis economicamente, o índice de desemprego e dificuldades geradas pela falta de renda assolaram com maior intensidade as pessoas com menos escolaridade

** A reportagem utilizou a mesma nomenclatura usada pelo IBGE durante a pesquisa e considera que pessoas desocupadas são aquelas que estão sem um emprego formal ou sem desenvolver alguma atividade econômica por mais de 3 meses

QUEM SÃO ESSAS PESSOAS ?

O DESEMPREGO, A MATERNIDADE E O ISOLAMENTO

Mãe do Gabriel e da Sofia, Natália Pitombeira se deparou com dois grandes problemas  logo no começo da pandemia: Como sobreviver sem uma renda fixa e como ensinar para o Gabriel, na época com 3 anos, e para a Sofia, com 11, que eles precisavam se proteger contra algo que não podia ser visto. “Eu tentava mostrar para eles que a gente não podia sair e que era preciso ficar sempre em casa, sem contato com ninguém.”
 

No meio dessa situação, a incerteza financeira agravada pelo desemprego também se fazia presente. O direito à pensão alimentícia para os filhos não fez parte do orçamento de Natália. O pai, ainda no começo da pandemia, informou que não poderia garantir o dinheiro devido ao encerramento do serviço de lanches do qual era sócio.

Escute o que Natália tem para dizer:

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Pressionada por todos os lados, Natália deu um passo à frente, reuniu o pouco dinheiro que tinha armazenado para emergências e buscou investir. Foi desse modo que gesso, tintas, pincéis e revistinhas, somados com crianças sem poder sair de casa, resultaram em sustento. 

 

Kits de pinturas em gesso para crianças que estavam confinadas em casa junto com suas famílias foram montados por Natália e divulgados para amigas que também são mães. Uma alternativa barata e segura para ocupação das crianças, cada vez mais ociosas durante a quarentena. Funcional e assertiva, a ideia gerou bons frutos e conseguiu garantir o sustento da família por um período, que se tornou curto diante da queda de compra dos kits, após o retorno do trabalho presencial de alguns pais. 

Nesse novo contexto, o auxílio emergencial seria a única solução. Mesmo achando que não iria ser aprovada, ela optou por tentar e um mês e quinze dias depois de ter solicitado, bem quando todo o restante das economias já se esgotava, Natália conseguiu receber o benefício. “Um alívio”, assim define a sensação. “Eu já tava com meu cartão atrasado, tava no parcelamento do IPVA, eu precisava de ajuda.”

 

Ajuda — tão fundamental em momentos de crise e tão escassa justamente neles. A mãe solo recebeu muita ajuda de amigos, principalmente na divulgação de qualquer iniciativa de venda ou prestação de serviços e também ajuda de familiares. “Sempre me ajudando. Um dava uma comida, uma carne; outro dava um leite e assim ia dando certo, porque a despesa com criança é muito alta”, relata.
 

Emocionada, Natália não consegue conter as lágrimas ao relembrar momentos de dificuldade ao lado dos filhos, em especial das vezes em que eles lhe pediam algo, como uma pizza para o jantar e ela não tinha condições de comprar. Em meio às lágrimas, frisa o suporte que eles fornecem a ela para continuar lutando. “Nesse momento dá orgulho, significa que eu tô fazendo certo, né? Tô ensinando eles da forma correta. Preciso deles pra tudo nessa vida, pro que eles puderem me ajudar”, destaca ao mencionar as vezes em que seus filhos tentaram amenizar o fato gerado pela Covid-19.

Escute o que Natália tem para dizer:

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MUDANÇAS NA ROTINA E IMPACTOS NA CONVIVÊNCIA

“Logo que começou a pandemia, eu me senti numa guerra”, assim Natália define seu primeiro sentimento diante da crise gerada pela Covid-19. A administradora por formação precisou não só lidar com a insegurança diante do vírus, como também teve que cuidar de duas outras vidas enquanto tentava driblar o desemprego. “Eu precisei ser mãe, aumentar meu trabalho como dona de casa e também me transformar em professora”, conta sobre os processos de adaptação vivenciados durante os meses que ficou em isolamento total com sua família. 

Escute o que Natália tem para dizer:

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O desafio, porém, não seria fácil. “Moro em um apartamento pequeno no piso superior. Se eu ficar um mês, dois meses, três meses que seja em isolamento com duas crianças, nós vamos pirar.” Como forma de tentar driblar essa questão e também como uma medida de reduzir os gastos, Natália decidiu ir para casa de sua irmã, onde passou três meses junto com os dois filhos. 

 

A realidade de Natália foi vivenciada por cerca de 20% de todos os jovens adultos e milhares de pessoas com mais de 30 anos ao redor do mundo. O dado é uma estimativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que frisou que a falta de renda conduziu parte da população a dividir moradia ou retornar para a casa dos pais. 
 

Natália relata ainda que, durante o isolamento social, a rotina se resumiu a tentar minimizar os impactos para saúde física e mental de seus filhos. Porém, com o passar dos dias, a falta de um tempo exclusivo para si mesma começou a afetar seu bem-estar. “No início foi muito difícil, eu tava exausta. Depois consegui fazer eles entenderem melhor o que tava acontecendo e que eu precisava da ajuda deles, mas chegou num momento em que eu precisava descansar também, ter um momento meu”, desabafa. 

Escute o que Natália tem para dizer:

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Com tanto acontecendo em tão pouco tempo, Natália suspira ao ser questionada sobre a relação com os filhos. “Muito próxima”, “intensa” são expressões utilizadas por ela para descrever o forte laço que os une. Diante dos desafios gerados pela pandemia, ela pondera que seu filho mais novo teve um processo de amadurecimento acelerado; com a mais velha, a intimidade se fortaleceu. “Não sou só mãe, agora também sou a melhor amiga para tudo”, conta emocionada sobre a nova relação com a filha.

Escute o que Natália tem para dizer:

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O FUTURO PARA NATÁLIA

A partir da quarta parcela do auxílio emergencial, Natália relata ter começado a enfrentar problemas para o recebimento do benefício, desde atrasos até dificuldades de acesso e saque do valor. “E eu já estava sem a venda dos kits, então a renda voltou a apertar bastante”.

Foi tentando se precaver diante de uma nova limitação de renda que Natália adaptou a rotina dentro de casa para que pudesse realizar cursos profissionalizantes online. As aulas de “cartonagem de luxo” foram as escolhidas e concluídas por Natália, que pretende seguir empreendendo.

“Vai ser nessa pandemia que eu vou conseguir me reinventar. Passei dois anos só cuidando das crianças, da casa, cobrando pensão e precisando de ajuda dos familiares, mas agora eu encontrei um norte”, afirma confiante sobre sua decisão. Ela está otimista com relação ao empreendimento e espera alcançar um bom resultado em 2021, mesmo com as dificuldades pós-pandemia.


O ato de empreender e maternar, como definiu, é algo natural para Natália.“Durante quatro anos eu venho fazendo entrevistas, mas nunca sou chamada e eu já percebi que o grande empecilho pro mercado de trabalho é eu ser mãe. Quando eu digo que tenho filhos, a pergunta seguinte é com quem eles vão ficar/quem vai cuidar deles, então eu sou desclassificada”, frisa. Sendo assim, empreender é a única forma de ela continuar presente na vida dos filhos, e ser completamente independente.

“É esse conhecimento que vai me fazer dar início e ter sucesso nessa nova jornada que estou iniciando”, pontua. “Acredito que nessa pandemia as pessoas aprenderam muito o significado de humanidade, de cuidar do outro”, completa ao dizer que, além disso, ela também aprendeu a cuidar de si mesma e se colocar como prioridade.

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O AUXÍLIO QUE DEVERIA TER SIDO EMERGENCIAL

Para Maria Santana, moradora do bairro da Serrinha, em Fortaleza, o auxílio emergencial foi um desejo distante e nunca alcançado. Quando a pandemia surgiu no Estado, Maria estava desempregada e sem possibilidades de buscar trabalho, pois se encontrava nos últimos meses de uma gravidez com outros dois filhos pequenos para cuidar. O pai das crianças já não morava mais com a família e também havia perdido o emprego durante o período de isolamento social e fechamento do comércio. Assim, além de se preocupar com a possibilidade da doença atingir a ela e aos filhos, ela se afligia com a falta de dinheiro para sustentar o lar. 

Escute o que Maria tem para dizer:

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Mesmo se encaixando nos pré-requisitos necessários e sendo beneficiária do programa Bolsa Família, Maria não conseguiu sacar nenhuma parcela do auxílio emergencial, que teve seu status cancelado sem justificativas. Ela tentou entrar em contato com o Centro de Referência e Assistência Social (Cras) e a Defensoria Pública do Estado do Ceará para solucionar o problema, mas não obteve nenhuma resolução para o caso até a publicação desta matéria.

Escute o que Maria tem para dizer:

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A falta de renda da família culminou no atraso do aluguel, durante todo o período de quarentena, da casa onde moravam. Assim, eles tiveram que contar com a solidariedade do dono do imóvel para renegociar a dívida e pagar o débito aos poucos. A mãe de Maria veio do interior para ficar junto da filha e dos netos, ajudando também com uma conta e outra. Além disso, como moradora da Serrinha, ela conseguiu receber cestas básicas do projeto social AmorBase, gesto fundamental que a auxiliou a manter o lar.

 

Maria conta ainda que as notícias negativas em torno da doença, relatadas pela mídia, a deixavam desesperada, praticamente em estado de pânico. O medo de ficar doente estando grávida e precisar se internar rondava os seus pensamentos frequentemente. Foi por meio das médicas e enfermeiras do posto de saúde, onde fazia acompanhamento, que ela ia obtendo orientações e se acalmando aos poucos.

Escute o que Maria tem para dizer:

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LINHA DO TEMPO DO AUXÍLIO EMERGENCIAL

Articulação conduzida pelo líder da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, o processo que estimava a criação de uma renda para minimizar os efeitos da pandemia na economia do País e na qualidade de vida dos brasileiros teve como relator o deputado Marcelo Aro (PP-MG) e surgiu em março de 2020 com o agravamento da pandemia no País e no mundo.
O Governo Federal foi contra a medida, com posicionamentos do presidente da República, Jair Bolsonaro e do ministro da Economia, Paulo Guedes.

A CONSTRUÇÃO DE UMA REDE SOLIDÁRIA

O fortalezense Roger (leia-se Rôge) Miller foi uma das milhares de pessoas que tiveram problemas para acessar os aplicativos e movimentar o auxílio emergencial. As dificuldades iniciaram ainda no processo de cadastro para recebimento do benefício e mesmo com grande experiência na área de tecnologia, ele precisou dedicar certo tempo para conseguir contornar os problemas.

Rôge, que trabalhava como professor de disciplinas associadas à tecnologia e tecnologia da informação, conta ainda que sem seu conhecimento técnico de informática, talvez não tivesse conseguido ter acesso ao seu direito sem se dirigir a uma agência da Caixa Econômica. E mesmo quando conseguiu acessar sua conta, enfrentou problemas para movimentar o dinheiro e teve que gerar um boleto em outra conta digital para transferir o valor e assim conseguir sacá-lo.

Desempregado, o benefício era sua esperança e foi sua principal fonte de renda durante a quarentena. Beneficiário de outros programas sociais, Rogê solicitou o auxílio emergencial e foi aprovado ainda no primeiro mês de anúncio do reforço financeiro. Mas ter acesso ao dinheiro não foi fácil.

“Eu tava com dificuldade para acesso, e muita gente também tava, até porque no primeiro mês, nos primeiros 45 dias depois da liberação do auxílio teve vários desencontros de informações”, explica. O professor, que também é estudante de Educação Física na Universidade Federal do Ceará (UFC), analisa que a falta de informação e de orientações de como utilizar o aplicativo foram responsáveis pelas recorrentes aglomerações nas agências da Caixa.

Falta de estrutura nos bancos de dados e servidores do governo foram outras falhas apontadas por Rôge. Enquanto profissional da área de tecnologia, ele acredita que a disponibilização pelo aplicativo foi a melhor forma de torná-lo acessível ao público, mas frisa que o conhecimento necessário sobre como utilizar os aplicativos corretamente foi deixado de lado pelo governo. 

Escute o que Rôge tem para dizer:

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Diante das dificuldades em acessar os canais disponibilizados pelo Governo Federal para cadastro, acesso e movimentação do auxílio emergencial, como um bom professor, Rogê ficou inquieto ao pensar que outras pessoas, com menos habilidades tecnológicas, estariam com problemas ainda maiores. 

“Confesso que eu fiquei muito p*t* da vida, poxa, é um direito meu, sabe? E eu sou do ramo da tecnologia da informação. Se eu não estava conseguindo acessar, como estariam as outras pessoas?”. 


Pensando nos outros, Rôge decidiu mapear e analisar tecnicamente os aplicativos do auxílio emergencial, da Caixa Tem e também os canais virtuais que haviam sido informados. Após entender e conseguir solucionar o problema que ele estava enfrentando, decidiu expandir ainda mais a missão de professor.

Em uma ação de solidariedade, Rôge passou a monitorar suas redes sociais. O objetivo? Encontrar pessoas que estivessem enfrentando problemas para receber o benefício. Bastava algum conhecido desabafar sobre as dificuldades com cadastro ou auxílio que ele se lançava nos comentários: “qual o problema?”, “qual erro tá aparecendo?”.

Escute o que Rôge tem para dizer:

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O medo de o acusarem de fraude ou de estar com más intenções não intimidou Rôge, mas fez com que ele limitasse as pessoas para as quais oferecia ajuda, dando preferência a conhecidos. Mas como uma boa ação se propaga com velocidade, segundo ele, “logo vieram amigos de amigos, familiares de colegas, vizinhos, alunos e até pais de alunos que tinham direito ao benefício, sabiam que precisavam se cadastrar pelo aplicativo, mas estavam tendo dificuldades”.

Ao todo, cerca de 12 pessoas foram ajudadas diretamente por ele. A maioria conseguiu receber o valor corretamente depois da ajuda de Rôge, que, com modéstia, acha graça quando perguntamos se recebeu muitos agradecimentos depois disso.

Entre risadas e suspiros, declara: “O sentimento que fica é o de satisfação, né? Até porque a função social de um professor é ajudar a outra pessoa a evoluir, seja em que área for”.

Escute o que Rôge tem para dizer:

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Apesar da boa vontade em ajudar os outros, a pandemia e o isolamento não foram fáceis para Rôge. O medo e a insegurança diante do bem-estar de sua família se fizeram pesadamente presentes, de uma forma assustadora. A saúde mental, conta Rôge, foi fortemente pressionada e bombardeada com a quantidade de informações e relatos sobre os crescentes números de casos e mortes associados a Covid-19.

O sentimento de impotência diante do vírus se intensificou depois da morte de um conhecido. “Foi aí que eu senti aquele baque, o peso de que a situação de qualquer pessoa pode pegar é real, de qualquer idade, independente de religião, independente de orientação sexual, independente de identidade, o risco de pegar e vir a falecer é real”, relembra.

Pelo fato da mãe viver com algumas enfermidades e pela idade avançada, o medo de Rôge cresceu. Integrante do grupo de risco, os cuidados de prevenção na casa que ele divide com a mãe precisaram ser intensificados. De início, Rôge conta que sua mãe não acreditava muito na pandemia e que foi preciso um processo de conscientização até que ela entendesse a gravidade da situação.

“No início da quarentena minha mãe não acreditava muito, né, ela via na TV e pensava que poderia ser só uma ‘gripezinha’ e eu tive que trocar o cadeado aqui do meu portão pra ela não sair”, fala rindo da situação, mas destacando que seu maior temor era garantir a segurança da mãe.

 

Ainda nesse intuito, ele pediu demissão do emprego e decidiu tentar complementar a renda dando aulas particulares de forma remota. Alguns bicos como editor de vídeo e fotos também foram meios encontrados por Rôge, para assegurar a renda da casa. “Eu não me sinto seguro, mesmo com o auxílio, eu não me sinto seguro”, pontua diante dos recorrentes atrasos no pagamento do benefício.

Para ele, a pandemia expôs uma realidade de desigualdades sociais que precisam ser combatidas de forma urgente. “As dificuldades de acesso ao auxílio emergencial são exemplos de como o conhecimento é repassado de forma desigual e proposital” para gerar o que chama de “estrangulamento social”.

“O conhecimento transforma vidas e transforma sociedades”, frisa ao pontuar que o repasse de informações fragmentadas e confusas sobre o auxílio, e sobre temas centrais como política e economia, faz parte de uma estratégia de controle, segregação e manipulação da base da sociedade.   

UM DIREITO DIFICULTADO

O cadastro e a solicitação do benefício foram fáceis para a microempreendedora Patrícia Stite. Cearense moradora de Messejana, ela conta que o processo de cadastro foi “intuitivo”. Os problemas porém começaram ao tentar movimentar o dinheiro que havia recebido do auxílio emergencial ou tentar sacar o benefício.  “Muita chateação, muita dor de cabeça e um grande exercício de paciência”, relembra a confeiteira de 46 anos.


Patricia representa o setor mais impactado pela pandemia, o de eventos e atividades culturais, o primeiro paralisado e um dos últimos a retornar. “Com a suspensão do meu trabalho, a minha renda foi completamente suspensa. O auxílio não foi minha principal fonte de renda, ele foi minha única fonte”, comenta.

A necessidade do auxílio diante da suspensão total de suas atividades produtivas fez com que a microempreendedora buscasse, cada vez mais urgentemente, meios para ter acesso ao dinheiro. Isso aumentou sua indignação a cada erro enfrentado no processo. 

Escute o que Patrícia tem para dizer:

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Sem conseguir acessar o dinheiro por meio remotos, Patrícia, que até então estava isolada dentro de casa, se viu obrigada a ir em uma agência da Caixa, e não só uma vez. Ela conta que o auxílio emergencial foi utilizado para tudo, do aluguel até a alimentação e definiu como um “sofrimento” o intervalo entre a disponibilização do saldo e sua real movimentação ou saque.

“Mesmo a Caixa dizendo que atitude x, y, z era pra evitar aglomeração, tinha gente que era obrigada a ir para  as agências, aglomerando as pessoas de todo jeito”, relata associando a grande quantidade de pessoas que precisaram dormir nas filas formadas nas agências da Caixa aos erros frequentes que o aplicativo apresentava. “Eu imagino que a Caixa não estava preparada para a enorme quantidade de demandas que foi o auxílio, mas no início eu senti sim as coisas meio perdidas, com informações incompletas, o que gerava falhas no sistema”, acrescenta. 

 

Questionada sobre o que pensa diante dos casos de fraude no auxílio emergencial depois das dificuldades que enfrentou para conseguir o benefício, Patrícia desabafa:  “Não consigo encontrar uma palavra para isso. Eu acho que é mais do que cara de pau, mais do que mal caratismo, vai além de fraude”. “Eu acho que a pandemia veio revelar muitas coisas, porque você ter condições financeira e pedir uma ajuda de R$ 600… Você tá tirando a comida de alguém que precisa”. 

 

Apesar das críticas, ela não descarta a importância da medida e os esforços das entidades governamentais em torná-los disponíveis para a população. “Se com o auxílio já foi complicado, sem ele, eu não sei nem dizer o que seria”. Além das dificuldades financeiras, a microempreendedora comenta que a saúde mental também foi afetada durante a pandemia:

Escute o que Patrícia tem para dizer:

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Com o retorno gradual das atividades, a microempresária espera reviver bons momentos nos negócios e na rotina também. Ela projeta uma boa recuperação: “se a gente olhar só o lado ruim das coisas, a gente não vai pra canto nenhum”. Patrícia acredita que 2021 será um ano muito bom diante dos frutos que brotaram durante a pandemia. “Que seja possível de um mal tão grande a gente poder tirar algumas coisas boas apesar de tantas perdas. Eu olho para o futuro com esperança. Sempre”, completa desejando novos ares para o ano que vem e repelindo o ‘novo normal’, “que as coisas voltem a ser como antes!”. 

O QUE DIZ A CAIXA ?

A Caixa Econômica Federal foi procurada pela reportagem e questionada sobre as reclamações das pessoas ouvidas com relação a falhas no aplicativo, dificuldade de acesso ou recebimento do auxílio emergencial, bem como a questão das aglomerações e falta de informação nas agências. A reportagem tentou contato por telefone, whatsapp pessoal de assessores de comunicação da entidade e também pelo e-mail e não recebeu nenhum retorno sobre as demandas solicitadas. 

EM MEIO AO DESESPERO HÁ ESPERANÇA

Atuando desde 1981, a Associação dos Moradores do Bairro da Serrinha (Amorbase), carrega no nome suas razões de ser: Amparar, cuidar, acolher, amar. O projeto busca fornecer aos moradores do bairro de Fortaleza um recanto e um núcleo de incentivo ao desenvolvimento sociocultural e também econômico da comunidade.

Durante a pandemia, as atividades da Amorbase precisaram ser reformuladas, mas diante das dificuldades o sentimento do dever de ajudar o próximo se intensificou. Entre os meses de janeiro e setembro, a entidade conseguiu arrecadar e doar para famílias do bairro cerca de 9 toneladas de alimentos. 

 

Antes da pandemia, a associação, que passou anos funcionando como uma creche popular para o bairro, atuava em diversas frentes. Dentre os projetos estavam: um cursinho popular em parceria com a Universidade Estadual do Ceará (Uece), oficinas de teatro, fotografia, grupos musicais e aulas de inglês, além de ações de formação profissional.
 

“Com a pandemia nossas ações foram prejudicadas, não poderíamos mais realizar nada pessoalmente, então nos concentramos em iniciativas para amparar da melhor forma possível as famílias da comunidade”, explica Lorena Moura, diretora da Amorbase.

Para garantir os donativos, a entidade contou com a solidariedade de outros moradores do bairro, da Capital e mesmo de fora do Ceará. A Amorbase criou uma vaquinha online onde passou a receber doações em dinheiro que são utilizadas na compra e montagem das cestas básicas. “Nem sempre dá pra doar pra todo mundo, mas a gente montou um esquema de rodízio, de modo que todo mundo que está precisando recebesse a doação ao menos uma vez”, completa Lorena.

 

Pelo fato da comunidade ser subdividida em outros territórios, a Amorbase firmou parcerias com representantes de cada região do bairro, como forma de garantir um acompanhamento mais próximo, facilitando a identificação e o auxílio das famílias necessitadas. 

 

Algumas ações foram setorizadas, como no mês do dia das mães, quando todo o valor arrecadado em maio foi convertido em doações para mães solo da comunidade. Além dos alimentos, quites de higiene pessoal, limpeza do lar e de recreação para as crianças também eram entregues pela entidade. 


“A gente achava que o alcance ia ser bom, mas o alcance que teve foi muito surpreendente”, destaca Lorena em tom de orgulho ao comentar sobre a extensão da corrente de solidariedade montada pela Amorbase.

Escute o que Lorena tem para dizer:

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Fortalecendo as ações diante da calamidade pública gerada pela pandemia, a entidade montou a frente de ação “Periferia contra o corona e em defesa da vida”. A ação envolveu articulações com igrejas, universidades locais, ciclos de debates populares de movimentos sociais e até mesmo a equipe de futebol do bairro. 

 

O intuito foi produzir informativos sobre a pandemia e sobre o aumento dos casos de violência doméstica. A ação também desenvolveu canais de denúncia. Políticas de redução de danos também foram idealizadas, em apoio aos moradores que não conseguiram ser aprovados no auxílio emergencial e precisaram manter a rotina fora de casa, longe do isolamento.

 

“Quando a gente doava uma cesta, aquela cesta garantia minimamente alguns dias de quarentena para aquela família, sem precisar sair de casa para tentar conseguir dinheiro para comprar comida”, menciona Lorena diante do impacto das ações de solidariedade construídas no bairro. “Quando a gente doava uma máscara e informava sobre os cuidados necessários com a doença, a gente conseguia uma redução por menos que seja do risco de infecção e até de morte dos moradores do bairro”, completa. 
 

Pelo fato da comunidade ser subdividida em outros territórios, a Amorbase firmou parcerias com representantes de cada região do bairro, como forma de garantir um acompanhamento mais próximo, facilitando a identificação e o auxílio das famílias necessitadas. 

 

Algumas ações foram setorizadas, como no mês do dia das mães, quando todo o valor arrecadado em maio foi convertido em doações para mães solo da comunidade. Além dos alimentos, quites de higiene pessoal, limpeza do lar e de recreação para as crianças também eram entregues pela entidade. 


“A gente achava que o alcance ia ser bom, mas o alcance que teve foi muito surpreendente”, destaca Lorena em tom de orgulho ao comentar sobre a extensão da corrente de solidariedade montada pela Amorbase.

Escute o que Lorena tem para dizer:

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Nesse sentido, Lorena, com 20 anos, sendo uma das crianças beneficiadas pela Amorbase no início de suas atividades, se emociona ao mencionar o feito de uma maior proximidade entre os coletivos sociais, moradores e entidades durante a pandemia. Estudante de Letras na Universidade Federal do Ceará (UFC), ela comenta que sem o auxílio prestado pela entidade, acredita que o bairro, bem como seus moradores, incluindo ela mesma, estariam em uma situação de vulnerabilidade muito maior. “Não é só prestar uma ajuda, é também conscientizar sobre a importância da luta por direitos e mobilizar a comunidade”, reforça.

Escute o que Lorena tem para dizer:

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SER PONTE

O projeto social Ser Ponte (@serpontefortaleza) surgiu em março deste ano, por meio de uma iniciativa da pesquisadora do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará, Valéria Pinheiro, para servir de “ponte” entre pessoas que desejavam ajudar e entre pessoas que necessitavam receber ajuda, nos diversos bairros de Fortaleza, durante o período de pandemia do coronavírus. O projeto é, essencialmente, feito e voltado para mulheres, chefes de família, que possuem idosos ou crianças em casa e que não estejam sendo atendidas por outras instituições. A renda per capita das famílias assistidas é de, em média, R$ 56 por pessoa. 

 

Devido à atuação da Valéria, há mais de 20 anos em movimentos urbanos voltados ao direito à moradia, ela possuía diversos contatos em comunidades da capital que viabilizaram o início do projeto. O Ser Ponte mantém mediadores e agentes territoriais nesses locais, que vão atrás de doações e que fazem o envio de valores às mulheres necessitadas. A iniciativa chegou a contar com 600 doadores e promoveu renda básica de 180 reais mensais a 210 famílias em 18 áreas da cidade. Esse repasse que começou durante o mês de abril vai até dezembro de 2020. Caso consigam mais doadores, a intenção é continuar com o projeto ao longo do tempo.

 

Um dos princípios do Ser Ponte é a relação de confiança. O repasse financeiro é feito por meio de dinheiro e de crédito em mercadinhos locais às pessoas assistidas, a fim de que elas possam comprar alimentos ou outros itens necessários para suas casas. Além disso, o projeto contou com doações de equipamentos de proteção individual, roupas, móveis, eletrodomésticos, mantimentos e também com a participação de artistas que promoveram rifas de obras e tatuagens, transferindo os valores arrecadados para a iniciativa social.

Uma das famílias assistidas pelo Ser Ponte foi a da Natália Rodrigues, que já enfrentava dificuldades antes da pandemia pelo fato de sua esposa estar desempregada e elas morarem de aluguel com dois filhos pequenos. Única fonte de renda da família no período de quarentena, ela ficou preocupada quando a sua carga-horária no trabalho foi reduzida e, consequentemente, o salário também diminuiu. Assim, quando a família conseguiu ajuda por meio do projeto, a situação melhorou.

Escute o que Natália Rodrigues

tem para dizer:

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O PRÓXIMO ELO DAS CORRENTES SOLIDÁRIAS

O país ocupa a 74º posição no Ranking Mundial de Solidariedade, após cair 17 posições em 2018 e um avanço discreto em 2019. O estudo é produzido anualmente pela Charities Aid Foundation, representada no Brasil pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS).

A pesquisa internacional questiona cerca de 150 mil participantes de todas as regiões dos 126 países que integram a ação sobre atitudes de solidariedade divididas em: ajuda a algum desconhecido; doações financeiras para entidades e ações voluntárias. 

A REALIDADE BRASILEIRA

Com fama internacional de ser sinônimo de espontaneidade, alegria e encontros calorosos, a solidariedade ainda está distante da realidade brasileira. As ações de amor ao próximo e altruísmo que rotineiramente ganharam os noticiários durante a pandemia de coronavírus não necessariamente ocorrem com grande frequência no cotidiano dos brasileiros.

Dentre os brasileiros, a estimativa é de que apenas 28% da população tenha sido solidária no último ano. Com relação à ajuda para desconhecidos, 46% dos voluntários afirmaram ter ajudado ao menos uma vez. Apenas 22% dos brasileiros declararam ter feito alguma doação em dinheiro para uma entidade filantrópica, seja de cunho religioso ou social; e por fim, 15% declararam ter dedicado alguma parcela de seu tempo a ações voluntárias.

A idade é um fator que parece influenciar no nível de solidariedade do brasileiro
O gênero também exerce uma influência em quão solidário o brasileiro tem sido nos últimos 10 anos

O FUTURO ALÉM DA PANDEMIA

Apesar da diferença significativa entre os índices de solidariedade expressos pelo ranking mundial, uma pesquisa nacional feita pelo Datafolha durante o mês de setembro revelou uma forte intenção dos brasileiros em realizar cada vez mais ações de solidariedade.

 

 

 

 

 



A pesquisa destacou que cerca de 95% dos brasileiros já praticaram ao menos uma ação de solidariedade nos últimos cinco anos, o que significa que o sentimento de ajudar ao próximo existe na cultura nacional, mas não de forma constante ou crescente. A pandemia poderia ter mudado isso e instaurado nos cidadãos a vontade de ser solidários rotineiramente?

O levantamento publicado no dia 13 de outubro estima que apesar de apenas 27% dos brasileiros estarem de fato envolvidos em ações de solidariedade, 96% declaram sentir o desejo de realizar mais ações do gênero. 

A pergunta segue sem resposta, mas um dos entraves dos brasileiros, segundo o estudo, é encontrar ações coletivas que os motivem a continuar sendo solidários. O levantamento estimou que 68% dos brasileiros que praticavam ações de solidariedade as realizavam sozinhos e pontualmente por não conhecer outras formas e oportunidades de concretizar tais iniciativas.

 

A pesquisa constatou ainda que apenas três em cada dez citações feitas pelos brasileiros associavam ações de solidariedade com atitudes coletivas, como ajuda a instituições a exemplo ONGs, orfanatos, hospitais, asilos ou mesmo a prestação de serviços voluntários e comunitários.

Se um dia a mentalidade brasileira sobre a necessidade de ajudar o próximo irá mudar, se a pandemia terá um efeito direto sobre isso, se o Brasil conseguirá ocupar um lugar de destaque no ranking mundial de solidariedade são questões difíceis de responder.

Por enquanto, resta a certeza de que atitudes de solidariedade que desabrocharam, floresceram e se propagaram durante este período histórico ajudaram a minimizar os impactos sociais e econômicos gerados pela crise em decorrência da Covid-19 e, assim como as medidas de prevenção contra o vírus, contribuíram para a salvar vidas.

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